Um ano se passou, mas parece que foi ontem. A dor ainda ecoa na alma e o coração sofre. As lembranças nos ajudam a sorrir, mas a saudade dói. O sonho se transformou em um pesadelo do qual sonhamos acordar. Mas é preciso seguir em frente. É preciso continuar sorrindo e fazer o máximo para honrar todos que estão no céu, esse egoísta que sempre toma para si nossas mais brilhantes estrelas, muitas vezes quando não esperamos e em todas elas contra a nossa vontade. Nós nunca queremos ver o brilho sair do nosso lado para ter conosco apenas as lembranças e nos contentarmos em olhar as estrelas tão perto e tão distantes.
A linda história da Chapecoense foi interrompida tragicamente, mas sem se esquecer das 71 pessoas que partiram e honrando todas elas, foi retomada com muito sucesso e emoção. Em seu ano de reconstrução, o 'Verdão' conseguiu manter o patamar das temporadas anteriores e seguir crescendo e encantando o mundo. Certamente as estrelas estão sorrindo felizes.
No entanto, não significa que seguir em frente é fácil. A dor sempre irá existir. O que se pode fazer é continuar caminhando e convivendo com ela.
Quem entende muito bem isso é Vinícius Eutrópio. O treinador montou o grupo da Chape que fez sucesso em 2015 e foi mantido em 2016, quando os feitos do Verdão foram ainda mais extraordinários com Caio Júnior. Ele conhecia quase todos os jogadores falecidos na tragédia e sofreu muito com a perda de seus amigos. Em 2017, atendeu o chamado de seu antigo clube para ajudar na reconstrução após a demissão de Vagner Mancini.
Pouca gente tem uma relação tão intensa com a Chape quanto Eutrópio, que por isso sofreu muito com a tragédia.
"Eu montei o grupo de 2015 junto com a diretoria. A gente foi muito bem aquele ano, ficamos 25 rodadas entre os nove primeiros colocados do Brasileirão. A campanha na Copa Sul-americana também foi ótima (a Chape foi eliminada apenas pelo River Plate, nas quartas de final). A manutenção de boa parte daquele grupo foi uma das razões do sucesso ainda maior em 2016 (quando a Chape além de campeã estadual e da boa campanha na Série A do Campeonato Brasileiro, chegou até a final do torneio continental). O time do Caio (Júnior) tinha oito titulares da minha equipe", diz o treinador em entrevista à 'Goal Brasil'.
"Doeu muito porque eu conhecia quase todos os que faleceram.. O time que sofreu o acidente tinha Danilo, Caramelo, Neto, Diego, Dener, Gil, Cléber Santana, Kempes e Bruno Rangel (pausa). É difícil. Eu lembro que comecei a receber várias mensagens ainda de madrugada e, ao acordar, fui ler as notícias do acidente. Eu entrei em contato com o pessoal de Chapecó na mesma hora e peguei um voo para a cidade", lembra.
"Eu fui lá para confortá-los, mas também para ser confortado. Doía muito. Todo mundo daquele grupo se tornou amigo. Nós éramos muito próximos. Eu ligava semanalmente para todos, tínhamos contato frequente e próximo", se emociona.
No entanto, diante de tanta tristeza pela perda de várias amigos, Eutrópio teve uma alegria. Um dos amigos mais próximos do treinador tinha sobrevivido. Neto, que foi para a Chape por indicação do técnico, estava vivo.
"Eu levei o Neto para a Chape. Eu apostei nele na época em que ele tinha sido vetado por um ou dois times após sair do Santos por um problema de coluna. Ele era e é um grande amigo. Eu mandei mensagens para ele e conversamos algumas vezes, mas o nosso reencontro só aconteceu na Chapecoense, quando eu assumi como técnico e ele já estava treinando. Foi muito emocionante rever o amigo e foi muito forte", conta.
O reencontro aconteceu porque após a demissão de Vagner Mancini, Vinícius Eutrópio foi o escolhido para ser o novo e segundo treinador da Chape no ano de reconstrução, e o técnico que, pela relação e identificação com o clube, aceitou o convite no momento em que ele foi feito, apesar de saber das dificuldades e ter enfrentado várias durante os dois meses em que comandou a equipe.
"Para mim foi muito gratificante por ser a Chapecoense. Mas meu trabalho foi de transição em um momento muito difícil, porque o time vinha de nove jogos que não tinham sido bons, sofrendo 23 gols nesse período, e com 20 jogos durante dois meses, por todo o mundo, por conta dos amistosos e a Copa Suruga. Além disso, eu tinha dez jogadores lesionados, sendo cinco titulares, e dois dos principais jogadores vendidos (Rossi e Andrei Girotto)", lamenta.
"Eu tive que fazer um trabalho de transição para o processo seguir normal e poder realinhar. Eu tinha que reorganizar o time taticamente. Não foi fácil, mas foi fundamental para a equipe poder se recuperar. O que está acontecendo agora, está dentro do planejamento e as pessoas de dentro do clube sabem disso", garante.
"Neste ano, a Chapecoense veio na mesma linha de escolher um grupo de jogadores experientes e todos os jogadores vieram cientes da responsabilidade e da postura que eles iriam ter, que seria uma postura muito especial em relação ao clube e ao ano. Às vezes todo mundo ficava preocupado com a cobrança, que existiu normalmente apesar do ano de reconstrução. Nessas horas, eu sempre falava do Torino, que era a base da seleção italiana, potência mundial e levou 20 anos para ser campeão italiano depois da tragédia que aconteceu com eles. A Chapecoense não era potência mundial nem base da Seleção Brasileira, mas a cobrança era enorme e o pessoal queria resultados imediatos. Mas eles tinham plena confiança na recuperação e que conseguiriam encerrar o ano bem como estão fazendo. O grupo é experiente e fechado", afirma.
No entanto, apesar de todas as dificuldades, Eutrópio celebra sua passagem neste ano pela Chapecoense, e vê tudo o que aconteceu com o clube como uma transformação importante que transcende o futebol.
"Foram processos importantes na história do futebol. O futebol colocou a Chapecoense no Camp Nou abrindo a temporada oficial do Barcelona. O futebol fez o Papa recepcionar a Chapecoense. Tudo isso tem uma simbologia muito forte do ponto de vista humanitário. Esses jogos mostraram que a solidariedade do ser humano ainda existe."
"Já do ponto de vista futebolístico, fizemos bons jogos no exterior e a viagem foi tão boa que nos deu um retorno importante. O grupo se uniu e ficou ainda mais próximo. Quando voltamos, três dias depois ganhamos do Palmeiras no Allianz Parque pela primeira vez. A Chapecoense conseguiu cumprir todos os seus objetivos dentro desse desafio imenso que foi se reerguer, se reestruturar e representar essa solidariedade no mundo, e isso conseguindo bons resultados dentro de campo", exalta.
Além da emoção e da responsabilidade do retorno ao clube e comandá-lo em um ano de reconstrução, Eutrópio viveu as emoções de liderar não só Neto, mas também os outros sobreviventes da tragédia, e viver grandes momentos com eles.
"O momento mais forte para mim na Chape o Alan (Ruschel) jogar contra o Barcelona, na volta dele aos gramados. Isso pela emoção, todo o cenário e tudo que aquilo que representava. Foi um momento muito bonito. E depois, contra a Roma, foi uma grande surpresa, porque ele jogou muita bola e eu coloquei ele em uma posição inicialmente para protegê-lo, porque ele é lateral-esquerdo, e eu coloquei ele na segunda linha e pelo lado direito, para ele ficar com mais liberdade e não ter essa responsabilidade de precisar marcar. Desde o primeiro dia que cheguei, eu comecei a treiná-lo desta forma para ele se recuperar sem essa pressão. Foram dois momentos bem interessantes. Um foi a volta dele e a outra foi uma surpresa. Ele foi o melhor jogador nosso contra a Roma, e depois jogou muita bola também contra o Lyon", comenta.
Ainda sobre a partida contra o Barça, o treinador conta uma interessante história. "Parte da equipe chegou antes e parte depois, como todos sabem, mas nós só chegamos três horas antes do jogo, depois de 12 horas de viagem, e eu escalei o time no vestiário. Chamei a comissão técnica e perguntei quem estava melhor e escalei na hora mesmo (risos). Não tinha como ser diferente pelo calendário pesado, porque não adiaram nossas partidas e tínhamos muitos jogos em um curto período de tempo", relembra.
"Mas foi um jogo tranquilo. Não estávamos com um time treinado e nem tínhamos a pretensão de ganhar do Barcelona. E acabou sendo uma grande partida. Eu comparo aquela emoção que vivemos e o momento com uma final. Acho que só uma final de campeonato teria um nível igual ao daquele jogo. A forma como os jogadores do Barcelona nos receberam, tirando foto, conversando e querendo saber de como todos estavam... E tem que acrescentar o Follmann e o Neto. O Alan jogou, mas o Follmann tem uma alegria, acho que é um cara que ninguém tira a alegria dele. É um exemplo para todos. E o Neto sempre foi um líder muito positivo e agora exerce essa liderança cada vez mais", elogia.
"Eu me aproximei muito do Follmann em Roma. Ele participou dos treinos, deu palestra, entrou no treino de dois toques que fizemos. Eu falei muito com ele, da importância que ele tinha para nós e que eu queria ele mais próximo de nós, sempre em campo, nos treinos e também quando eu mostrasse os vídeos (dos adversários). E ele é um exemplo. Ele me disse que estava muito feliz, que está alegre demais e super feliz por tudo. E vendo ele, você comprova isso. Ele está sempre alegre, brincando, é um cara que superou tudo o que aconteceu e está valorizando o que a segunda chance que a vida lhe deu", completa.
No entanto, a saudade de todos os amigos que partiram não passa e nunca vai passar, e Eutrópio resumiu seus ex-comandados e a Chapecoense em uma história e uma bela colocação.
"Aquele time de 2015 tinha uma amizade muito grande que depois aumentou ainda mais. Muitos do que se foram eram grandes amigos. Eu conversava com muitos deles todas as semanas. O Neto é um deles. E o nível do Neto é excepcional. Tem até uma história... Eu revezava dois zagueiros: o Neto e o Rafael Lima (hoje no América-MG), e eu ia tirar um deles do time no penúltimo ou último jogo do campeonato. Chegou no sábado, antes da partida, e o Neto falou comigo: 'eu estou vendo que você está revezando nós dois. Não me coloca de titular porque não vai valer nada esse jogo para a gente. Dá essa oportunidade para ele (Rafael Lima) ganhar moral e seguir crescendo. (Pausa) Na preleção do jogo, eu nem precisei falar nada. Apenas contei essa história e fomos para o jogo. O nosso grupo era muito unido", conta.
"Eu acho que aquele grupo representou, pelo menos na minha vida e na minha visão, o que tinha de mais legítimo e original no futebol. Eram pessoas do bem, que gostavam de jogar futebol e estavam junto com uma direção que era muito simples e abraçava o time junto com a cidade. Por isso deu tão certo e conquistou todos", finaliza.